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Apresentação de Paula Moura Pinheiro do livro “Maria Madalena, a Apóstola dos Apóstolos” de Maria Julieta Mendes Dias e Paulo Mendes Pinto

30 outubro 2023

É com muito prazer que venho apresentar-vos o livro de Maria Julieta Mendes Dias e Paulo Mendes Pinto, “Maria Madalena, a Apóstola dos Apóstolos”.

Antes de dar conta daquilo que mais me encantou neste livro, impõe-se que estabeleça aqui um ponto prévio. É hoje adquirido por grande parte dos historiadores que se dedicam a esta área de investigação que: Desde tempos imemoriais, a história do lugar das mulheres na sociedade foi a história das sucessivas tentativas de controlo masculino sobre o corpo feminino. Garantir a efectiva paternidade dos filhos que cresciam no ventre das mulheres era um dos imperiosos objectivos. Desde logo, porque uma paternidade legítima tinha implicações patrimoniais. Esta necessidade essencial terá condicionado muito da natureza do poder que se exerceu historicamente sobre o género feminino. O medo atávico das mulheres que, durante milhares de anos, assombrou os homens, encontra num velho ditado a síntese perfeita: “os filhos das minhas filhas meus netos são, os filhos dos meus filhos, serão ou não.” Ora, entre os diversos mecanismos para o exercício do poder, os mitos cumprem uma função preciosa: operam profundamente, constroem por dentro a identidade dos indivíduos e, como no caso em apreço, fazem o subjugado abraçar a inevitabilidade do seu estatuto subalterno. Na verdade, durante milhares de anos, a esmagadora maioria das mulheres não pôs em causa a sua condição subalterna. Mais, na educação dos filhos, foi perpetuadora dessa condição.

As narrativas sobre Maria Madalena têm de ser entendidas à luz deste dado basilar: o corpo, a mente, a imagem, o lugar da mulher na sociedade tinham de ser controlados. E sabemos que o eram, absolutamente, no mundo em que Maria Madalena nasceu. Ser mulher era ser menor. Como bem estabelecem de início os autores de “Maria Madalena, a apóstola dos apóstolos” é muito difícil fazer História a partir de textos sagrados, de textos poéticos. Julieta Mendes Dias e Paulo Mendes Pinto afirmam: a pergunta não deve ser “Quem foi Maria Madalena”, mas “Quem foi sendo Maria Madalena”. A verdade é que as narrativas sobre Maria Madalena foram sempre nebulosas, por vezes paradoxais. Porque os mitos têm essa faculdade orgânica de se irem adaptando aos tempos históricos, aos diversos contextos culturais, de mudarem as suas roupagens para sobreviverem no fundamental.

Este não é um livro religioso, mas um livro sobre História Religiosa. Mais propriamente, um livro que descreve e analisa a história das narrativas sobre uma mulher que foi próxima de Jesus: Maria Madalena. Numa apresentação sumária de quem estamos entregues neste livro: Maria Julieta Mendes Dias é formada em Ciência das Religiões e estudou Teologia; Paulo Mendes Pires é especialista e Professor em História das Religiões, com particular investimento em Mitologia Antiga e Estudos Judaicos. Encontramo-nos bem entregues, portanto. Em “Maria Madalena, a apóstola dos apóstolos” aprendi imenso. Aprendi que milhares de anos antes de Jesus ter cruzado o seu caminho com Maria Madalena, já existiam mitos em que o herói-Senhor era amparado, chorado e aclamado por uma actriz secundária, ainda que omnipresente. Se o judaísmo é o berço directo do cristianismo, o mundo da Roma que viu nascer Jesus e Maria Madalena - uma Roma que ia do Egipto à Germânia e, portanto, uma Roma íntima de muitas outras tradições - pulsa no Novo Testamento. Ou seja, antigas e diversas tradições ecoam nas narrativas sobre a relação de Maria Madalena com Jesus. Os evangelistas não podiam escapar ao caldo cultural em que viviam, as suas interpretações do mundo derivavam dele, e muito antes do ano Um da nossa era, já o poder da prostituta e o poder da virgem estavam adquiridos como estruturantes da ordem social. Como já aqui se sublinhou, os mitos derivam de pavores e desejos viscerais; os mitos adaptam-se, transfiguram-se para perdurar. O cristianismo absorveu muito das tradições mitológicas anteriores. Cito Maria Julieta Mendes Dias e Paulo Mendes Pires: “Interessante o quão atrás no tempo da memória colectiva as ideologias vão buscar conteúdo”. Depois, neste livro confirmei algumas das minhas perplexidades como leitora do Novo Testamento: Maria! A que Maria se referem, em muitos passos, os Evangelhos? Há bastante mais que duas Marias nos Evangelhos e, frequentemente, instala-se a dúvida.

Historicamente, foi o Papa Gregório I, nos finais do séc. VI, a fixar os arquétipos das duas Marias que haveriam de guiar o universo da cristandade: a mãe-virgem e a prostituta-arrependida. Ou seja, a identidade feminina no mundo ocidental (digamos assim, para simplificar) seria construída entre estas duas baias. Sem nuances. Ironicamente, a estigmatização que passou a impender sobre Maria Madalena como prostituta haveria também de a aproximar dos crentes que se sabem pecadores. Maria Madalena sempre foi humaníssima. Terá sido por isso que a veneração a Maria Madalena - arrependida, redimida por amor - se propagou desde cedo.

Persistindo na construção da História (com H maiúsculo), os autores de “Maria Madalena, a apóstola dos apóstolos” sublinham com argúcia um aspecto surpreendente: se Maria Madalena nasceu num mundo em que se acreditava que as mulheres eram, mais que subalternas, irrelevantes, como compreender a recorrência da presença de mulheres nos Evangelhos? Como ler a reiterada presença de Maria Madalena ao lado de Jesus? A conclusão parece incontornável: Maria Madalena tem de ter sido relevantíssima para que os evangelistas, tão diferentes entre si, mas todos participantes da mesma mundividência, não tenham podido apagá-las (às mulheres) e silenciá-la (a ela, Maria Madalena) nas suas narrativas. Por outro lado, e esta é uma aferição minha, Maria Madalena, a mulher e já não a figura narrada, tem de ter sido excepcional: é historicamente plausível que, sem tutela masculina, Maria Madalena tenha tomado a decisão de seguir Jesus. No mundo judaico de há dois mil anos, comportou-se socialmente como se fosse um homem. Excepcional, excêntrica são adjectivos adequados para descrever uma mulher que se comportasse assim. Não por acaso, é no IV Evangelho, o chamado Evangelho de João, que Maria Madalena surge com mais protagonismo. É neste Evangelho que Maria Madalena é proclamada “a apóstola da ressurreição”. E nos Escritos Apócrifos Maria Madalena surge, invariavelmente, como uma figura importante nos primeiros tempos da igreja.

Aqui chegados, os autores de “Maria Madalena, a apóstola das apóstolas” analisam as razões que conduziram à interrupção daquele que seria o natural e indiscutível protagonismo de Maria Madalena no seio da cristandade; e, por inerência, digo eu, à interrupção do que seria o natural percurso paritário das mulheres dentro da igreja. De Paulo o fervoroso convertido, mas notório misógino, a Constantino, o primeiro imperador romano a converter-se ao cristianismo e a contaminá-lo de uma estrita lógica política, a edificação e a consolidação das estruturas hierárquicas da igreja vão aproximá-la (à igreja) cada vez mais do mundo secular, das conveniências sociais, das decisões  estratégicas, onde Maria Madalena é rasurada, maldita, quando não apagada, em favor de uma Virgem Maria, puríssima, perfeitíssima, absolutamente inumana.

Mas quando as circunstâncias mudam, as narrativas das elites eclesiásticas e políticas (tantas vezes misturadas) adequam-se. Chegados à constituição dos reinos cristãos da Europa, aos séculos das cruzadas, a humaníssima Maria Madalena volta a emergir como poderoso instrumento na mobilização contra o inimigo comum: o Islão. É apenas um exemplo de como Maria Madalena, ao logo de dois mil anos, foi sendo iluminada ou obscurecida: dependeu sempre das circunstâncias, das conveniências de uma igreja estruturalmente masculina.

No final desta intensa leitura, termino quase como comecei: A História das narrativas sobre Maria Madalena é a História do lugar que foi sendo atribuído à humanidade das mulheres. Ou seja, o lugar (as mais das vezes, o não-lugar) que foi sendo atribuído ao direito de as mulheres serem pecadoras e arrependidas. A complexidade define a condição humana e não conhece género – há dois mil anos, Jesus agiu em conformidade com este dado de realidade. Neste capítulo, como em tantos outros, o testemunho de Jesus está mais que por cumprir no seio da própria igreja: o testemunho (cito os autores) “radicalmente inclusivo” de Jesus é radicalmente traído pela igreja que se erigiu em seu nome. Sem nunca o chegarem a formular desta forma, Maria Julieta Mendes Dias e Paulo Mendes Pinto fornecem-nos dados históricos para o concluirmos por nós próprios. Estão de parabéns.

24 Outubro 2023
Paula Moura Pinheiro