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Notícias

Cidadãos e Religiosos

23 junho 2016

O jornalista e investigador da área da área de Ciência das Religiões, Joaquim Franco, publicou uma valiosa reflexão na página web da SIC Notícias sobre a encíclica Laudato Si, do Papa Francisco e as suas implicações sobre uma forma de se ser cidadão neste século. Reproduzimos o texto aqui na íntegra.

Na encíclica Laudato Si, o Papa Bergoglio desenvolve a ideia de uma nova cidadania quando apresenta o estranho paradigma de um "amor civil e político".

O desafio é sobretudo dirigido aos crentes.

Diz ele que "o amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor", como "amor à sociedade" e "compromisso pelo bem comum"(art. 231).

Num documento para defender a Criação e o ambiente, o ecologista Francisco reafirma que "a política não deve submeter-se à economia e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia", dando como exemplo - mau exemplo - "a salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema financeiro" (art. 189).

Este "amor à sociedade" passa, na perspectiva do Papa Bergoglio, por um exercício político que tem como prioridade o bem comum, com reformas corajosas e medidas coerentes de combate à pobreza e às desigualdades sociais.

O pensamento religioso é também um compromisso com a comunidade.

A história das civilizações não se compreende sem a procura do sentido.

Perante as coisas inexplicáveis, o homem revelou-se, entre a construção da harmonia e a destruição da guerra, até chegar ao princípio da cidadania dos direitos e dos deveres.

Mas, na prevalência da ética e do humanismo, a cidadania que se pretende é já mais exigente.

É a cidadania que se entranha na própria dignidade humana.

Uma cidadania para o outro, para o cuidado do outro, que não deixa ninguém para trás.

A cidadania que nos faz iguais na diferença, da utopia de Thomas More à fraternidade de Francisco de Assis.

Para os cristãos há uma referência, esta cidadania ganhou forma numa pessoa concreta, num tempo concreto e messiânico.

Esta cidadania, tal como a Misericórdia que o Papa tenta restaurar no juízo do comportamento humano, é operativa.

A misericórdia diz-se quando se faz.

A cidadania diz-se quando se exerce.

Para lá das leis e das normas que refletem apenas a forma como o homem se vê na circunstância.

Terá pilares inalienáveis, mas sempre sujeitos à ousadia de Antígona.

Na nossa polis já não cabem os extremos da tragédia teocrática ou a cegueira de um laicismo segregador.

Já não somos apenas da cidadania grega do Estado, somos da cidadania da Pessoa, dos valores debatidos e discutidos em liberdade.

Uma cidadania assegurada com autenticidade e participação, capaz de conciliar o indivíduo com a sua responsabilidade maior, que é a da relação concreta e, na sequência, a da solidariedade concreta, com a consciência do todo.

Vem esta reflexão sobre a cidadania a propósito do aparente pouco entusiasmo popular com as eleições que se aproximam, condicionadas pela dinâmica mediática.

Como ir além do tempo do ecrã, das realidades aparentes e do factor mediático, que é benção e maldição, capaz de transformar vilões em heróis e encostar heróis ao anonimato.

Se a cidadania que queremos é a da liberdade e da democracia, como ser cidadão responsável sem a participação activa? Que requer, em primeiro lugar, a capacidade de ouvir para escutar, de olhar para ver, de interpretar para discernir.

Afinal, tudo o que se pede também a quem, pela via da fé, faz a procura ativa de um indizível que se revela no ombro ao lado.

Somos enquanto seres de relação, chamados à responsabilidade social, à co-responsabilidade, ao "amor à sociedade".

Bom ano.

Sugestões de leitura: O Rosto e as Imagens (Paulinas), de Joaquim Carreira das Neves; Que coisa são as nuvens(Impresa), de José Tolentino Mendonça; Liderar com humildade (Presença), de Jeffrey A. Krames.