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Opinião: "Dos perigos dum copo de água" por José Brissos-Lino

20 novembro 2018

Não, este texto não trata da importância da água para a sobrevivência humana, nem dos seus perigos quando salobra ou envenenada ou sequer dum repasto de casamento. É mesmo sobre o fenómeno religioso. Ou de como um simples copo de água pode matar.

A estória é simples e passou-se no Punjab, Paquistão. Uma mulher cristã foi condenada à morte por blasfémia. O governador regional Salman Taseer, que apelou ao seu perdão, foi assassinado pelo próprio guarda-costas, o qual, apesar de ter sido executado mais tarde, é considerado herói popular.

O primeiro “crime” de Asia Bibi, de 47 anos, casada e mãe de cinco filhos, foi estar na apanha de fruta com mulheres muçulmanas, e ter usado um copo para beber água de um poço, copo que elas já não puderam utilizar por ter ficado impuro, segundo os preceitos religiosos islâmicos. O segundo “crime” foi ter rejeitado o “conselho” para se converter ao Islão. O terceiro “crime” deve ter sido alguma resposta mais firme perante a insistência.

Apesar de ter negado sempre ter blasfemado contra Maomé – o que é crime no país – foi espancada em sua casa, presa e condenada à morte. Embora o juiz lhe tenha oferecido a liberdade em troca da conversão ao Islão, Asia respondeu que preferiria morrer como cristã. Passou oito anos numa cela solitária, onde cozinhava a própria comida para não ser envenenada. Finalmente foi absolvida depois de ter ganho o recurso que apresentou ao Supremo Tribunal, que a declarou “absolvida de todas as acusações".

Provavelmente foi a pressão internacional – incluindo pronunciamentos dos papas Bento XVI e Francisco – que conduziu a tal desfecho, ainda que tenha provocado a fúria de círculos religiosos que há muito pediam a sua execução e os juízes tenham agora a cabeça a prémio, assim como o advogado, que fugiu do país. Asia Bibi, que ainda há poucas semanas sofreu uma tentativa de assassínio na prisão, foi finalmente libertada mas o governo escondeu-a algures, em espaço militar, para a proteger da sociedade que a pretende linchar. Há notícia de ruas bloqueadas, carros incendiados e pessoas feridas em várias cidades do Paquistão, em especialcristãos arrastados e espancados por extremistas islâmicos que não aceitam uma libertação de Asia Bibi.

As leis rígidas sobre blasfémia no Paquistão têm sido frequentemente usadas como vingança em disputas pessoais, as acusações são baseadas em provas frágeis, e mesmo quando não provadas resultam muitas vezes em violência popular. É uma revisitação do velho tribunal europeu do Santo Ofício.

Não parece mas o mundo já chegou ao século XXI. Quando se fala em relativismo cultural nunca nos podemos esquecer do que é realmente nuclear: a liberdade das pessoas e dos grupos e os direitos humanos. Mas parece que os radicais de qualquer religião não entendem duas ou três coisas básicas. Desde logo que o indivíduo deve ter o direito de professar a religião que entender ou de não professar nenhuma, sem que por isso possa vir a ser perseguido, condenado, incomodado ou sequer marginalizado pela sua opção.

Que deve ter o direito de expressar a sua fé e de cultuar em comunidade. Que esses direitos se estendem aos grupos. Que é inadmissível qualquer condicionamento ou coacção de carácter religioso. Que o Estado não deve assumir-se confessional em caso algum, sob pena de fazer trair a justiça e a liberdade. Que a liberdade individual e os direitos humanos estão acima de quaisquer direitos religiosos, culturais, filosóficos ou ideológicos.

Os casamentos forçados, os casamentos de adultos com crianças, o sati indiano (imolação da viúva na pira funerária do marido falecido), a mutilação genital feminina, a prática da violação, a proibição de transfusões de sangue em menores em risco de vida, o sequestro de menores por seitas americanas no mundo rural, o abuso sexual de crianças por sacerdotes, tudo isto e muito mais surgem como aberrações e atentados contra as liberdades individuais e os direitos da pessoa em geral. Não há tradição, religião ou cultura que o justifique nos tempos em que vivemos. Tais práticas, face à lei de qualquer estado de direito, terão que ser consideradas crimes a exigir punição.

Os clássicos sabiam do que falavam. Tales de Mileto dizia que a água é o princípio de todas as coisas e Horácio era de opinião que a água é a coisa mais barata que existe. Já Erasmo de Roterdão afirmou que a água lava todos os males dos mortais. De facto, um simples copo de água pode representar vida e bênção. Diz o Evangelho: “Porquanto, qualquer que vos der a beber um copo de água em meu nome, porque sois discípulos de Cristo, em verdade vos digo que não perderá o seu galardão” (Marcos 9:41). E há também as chamadas tempestades num copo de água, ou o dito cujo em cima da telefonia para a oração de inspiração latino-americana neopentecostal.

Jesus de Nazaré prometeu à samaritana, junto ao poço de Sicar, que rios de água viva brotariam do seu interior. O nosso problema é que andamos a copos de água, em vez de ter a vida renovada por fontes de águas vivas. Até porque há dias em que um simples copo de água pode matar.

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