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"O pecado de Kavanaugh" por José Brissos-Lino

13 outubro 2018

Trump quis colocar o juiz conservador Kavanaugh no Supremo Tribunal para satisfazer a direita religiosa que o apoia. Mas não contou com a velha hipocrisia moralista americana. Ia-se dando mal.

O jornal The New Yorker escreveu em título que “A audição de Ford-Kavanaugh será lembrada como uma exibição grotesca de ressentimento patriarcal”. De facto, Kavanaugh transfigurou-se perante o testemunho de Christine Ford, revelando-se emocional e irritado, em claro contraste com o comportamento anteriormente apresentado durante a primeira fase da sua confirmação, deliberadamente estudado e cuidadoso. Desta vez a raiva veio ao de cima e uma indignação aparentemente simulada. Aliás, a liturgia das comissões parlamentares de inquérito em qualquer parte do mundo destinam-se mais a marcar uma agenda política do que a apurar a verdade dos factos. As pessoas nunca são responsáveis por nada de errado. Ou não se lembram de nada ou desenvolvem uma narrativa a fim de culpar terceiros.

A última atitude de Kavanaugh elucida-nos muito mais sobre a sua (pouca) aptidão para o Supremo Tribunal, do que qualquer alegado comportamento de há mais de três décadas. Talvez seja este o seu pecado.

A direita religiosa americana desdobrou-se no apoio cego ao candidato, por motivações meramente instrumentais, uma vez que se trata dum homem que servirá os seus interesses conservadores, em vez de procurar a verdade e a justiça. A tentação de culpar as mulheres pelo pecado dos homens é tão velho como o mundo e pelo menos como a mais antiga das narrativas bíblicas. O Livro de Génesis conta como Adão culpou Eva pela sua própria desobediência à ordem divina.

Embora o candidato tenha negado todas as acusações de Ford e alegado inocência (o arremedo de investigação do FBI foi considerado uma “lavagem”), dir-se-á que o perdão é possível e necessário para a vida colectiva. Os cristãos sabem que sim, porque “todos pecaram e carecem da glória de Deus, e todos são justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que veio por Cristo Jesus” (Romanos 3:23-24). A fé cristã defende até que, em certo sentido, todos os seres humanos estão num mesmo campo de acção moral. Ninguém pode julgar o outro sem pensar primeiro em si. Mas sem uma compreensão adequada de justiça, o perdão pode facilmente proteger o acusado sem restaurar as vítimas, e a Bíblia afirma que Deus odeia a opressão e a violência contra os vulneráveis.

Na tradição cristã, o perdão começa com a confissão do pecado. Reconhecer as más acções requer arrependimento, que significa afastar-se do erro, corrigir comportamentos e ajudar quem foi lesado. Se o arrependimento for honesto pode ajudar a curar feridas profundas, incluindo feridas da violência sexual. Mas o perdão de Deus ou de supostas vítimas não significa que Kavanaugh deva ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal, independentemente da sua competência jurídico-legal.

A denúncia de Christine Blasey Ford pode não ser uma questão de vingança ou a tentativa de destruir a vida de um homem, mas sim um grito contra a cultura da violação e a hipocrisia patriarcal. Até porque entretanto surgiram novas acusações de outras mulheres, pois quem faz uma vez sem receber punição, tende a reincidir.

Foi com manifesta relutância que Trump autorizou o FBI a “investigar” o juiz Brett Kavanaugh, cedendo ao pedido do senador republicano do Arizona, Jeff Flake, que entretanto havia sido confrontado no elevador do Senado por mulheres vítimas de abuso sexual e que desempatou a votação a favor do inquérito. Dias depois o mesmo Trump viria a ridicularizar publicamente o depoimento de Ford, num comício no estado do Mississípi, o que provocou a desaprovação pública de senadores do seu partido.

Mas o novo membro do Supremo Tribunal pode ainda ser alvo de impugnação se os democratas ganharem as eleições de Novembro, pois estão convencidos de que Kavanaugh não foi devidamente investigado e terá cometido perjúrio ao mentir no senado, sob juramento, acerca dos hábitos de bebida.

Há pelo menos um aspecto positivo em tudo isto. Pela primeira vez mulheres descomprometidas com o sistema estão a organizar-se por toda a América para entrar na política a sério. E começam a consegui-lo.

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