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Opinião: A Páscoa como escândalo, por José Brissos-Lino

17 abril 2019

A falta de compreensão do sentido da Páscoa tornou-se generalizada no mundo ocidental, apesar de a celebrar, por força da tradição e da cultura. A maior parte dos que se afirmam cristãos revela enorme dificuldade em entender o facto de a época pascal ser a mais significativa no calendário da fé cristã

Em função do pensamento pós-moderno vivemos numa sociedade predominantemente hedonista. O prazer pessoal, imediato e a qualquer preço está aí, bem presente nos comportamentos individuais e de grupo. Esta realidade não se conjuga com o conceito de sacrifício, e menos ainda com a ideia do sofrimento de substituição, no lugar do outro.

Ora, a mensagem cristã passa exactamente por aí, pois S. Paulo diz: “Mas Deus prova o seu amor para connosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (Romanos 5:8). E note-se que a motivação para tal sacrifício é o amor – outro conceito amplamente desvirtuado nos dias que correm – mas que representa a força mais poderosa do universo, segundo a poética de Salomão: “Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço, porque o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, com veementes labaredas” (Cânticos 8:6). Aliás, toda a epístola paulina à igreja de Roma bate na tecla da justificação pela fé através do sacrifício de Cristo, de carácter vicário e redentor, e a Carta aos Hebreus retoma o mote por analogia com a lei de Moisés e a tradição sacrificial hebraica.

A dificuldade crescente em compreender o conceito de fazer sacrifícios na vida quando se vive numa sociedade do prazer e do bem-estar é por demais evidente. Os millenials não entendem que os avós se tenham sacrificado no passado, procurado fazer poupanças, evitar os desperdícios e o dinheiro mal gasto, com vista a enfrentar a fase mais avançada da vida com a menor ansiedade possível. Mas a sua cultura desses idosos baseia-se na memória dos anos da guerra, dos racionamentos, privações, múltiplas incertezas e ausência de segurança social. Mas talvez já compreendam que os seus pais se sacrifiquem por eles, a fim de lhes proporcionar estudos de nível superior e que não lhes falte nada, embora eles não tencionem reproduzir o modelo.

Outro aspecto de incompreensão geral e persistente da essência da mensagem da Páscoa é a questão da cruz como escândalo. O Novo Testamento diz que os judeus consideraram a cruz de Cristo como escândalo e os gentios como loucura: “Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos” (1 Coríntios 1:23). A cultura helenística procurava o ideal do homem perfeito, por isso entender um Salvador do mundo desnudado e exangue, como vítima de tortura e morte ignominiosa e humilhante, era inconcebível.

Ainda mais para o judaísmo do primeiro século, que ansiava a libertação do jugo de Roma, e em vez dum libertador que entrasse em Jerusalém em cima dum jumentinho esperava um Messias montado num garboso cavalo branco, a comandar uma força militar, que viesse restaurar a soberania israelita em Judá. Para a religião judaica considerar o cruxificado como enviado de Deus e redentor era simplesmente escandaloso.

René Girard desenvolveu uma teoria do sacrifício onde o cristianismo triunfa “da organização pagã do mundo”, recusando a caça ao bode expiatório como expediente para o alívio da consciência colectiva. Mas a modernidade tardia trouxe consigo uma verdadeira subversão do período pascal na cultura. Uma sociedade extremamente individualista teria sempre dificuldade em entender a razão de alguém viver em função dos outros, entregando-se voluntariamente ao sacrifício pelos outros e sujeitar-se à morte em lugar de bons e maus, de conhecidos e desconhecidos.

E não a uma morte qualquer, mas à que decorre duma pena destinada aos maiores criminosos, sendo contudo inteiramente inocente. Talvez por isso, e devido à galopante falta de identificação religiosa na Europa, em particular nas regiões urbanas do território, as férias no período pascal são aproveitadas para descansar e viajar, não se lhes atribuindo qualquer valor espiritual ou religioso.

A cultura popular introduziu o coelho e o ovo na iconografia da Páscoa. Fala-se mais disto às crianças das famílias ditas cristãs do que da cruz e do sepulcro vazio. Mas o que significa a celebração da Páscoa? Para os cristãos marca a esperança de uma nova vida, um recomeço e a crença tanto na ressurreição, como na segunda vinda de Jesus à Terra.

Se a páscoa judaica (Pessach) celebrava a libertação da escravatura do povo hebreu no Egipto, a páscoa cristã representa a libertação da escravatura espiritual a que chamamos pecado. E não confundamos as coisas. Na perspetiva bíblica “pecado” não se reduz a uma sexualidade desordenada, mas sim a tudo que, por acção ou omissão, passe ao lado da vontade de Deus, uma vez que, etimologicamente, o termo significa “errar o alvo”. É caso para dizer: que atire a primeira pedra quem nunca errou.

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Imagem: Miguel Sotomayor/ Getty Images