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Opinião: As guerras precisam de natais, de José Brissos-Lino

18 dezembro 2018

A 17 de Dezembro de 2014 britânicos e alemães recriaram em Londres a partida de futebol disputada no Natal, um século antes, em pleno campo de batalha nas terras belgas, entre trincheiras inimigas. Afinal é possível construir um cenário de paz em tempos de guerra

Ficou para a História como a “trégua de Natal de 1914”. Um dos relatos conhecidos é o do Capitão C. I. Stockwell, pertencente ao Royal Welsh Fusiliers, do exército britânico: “Às 8:30h do dia 26, eu disparei três tiros para o ar, ergui uma bandeira com os dizeres 'Merry Christmas' e subi da trincheira. Os alemães levantaram uma placa com os dizeres 'Thank you' e o capitão deles apareceu no alto da trincheira. Nós saudámo-nos e retornámos às trincheiras. De seguida ele fez dois disparos para o ar. A guerra ia recomeçar.”

Este armistício espontâneo aconteceu na frente ocidental, em Ypres – próximo da fronteira francesa – naquela fria manhã de Natal, no meio duma carnificina estúpida chamada Grande Guerra – que se supunha acabar de vez com todas as guerras – permitiu canções de Natal, troca de presentes entre soldados alemães, por um lado, e franceses e ingleses por outro (comida e charutos, orações pelos camaradas de armas que tinham morrido, e até um jogo de futebol na “terra de ninguém”. Depois de meses de combates sangrentos, tudo parou. Bombardeamentos, tiros com espingardas de assalto e granadas. Segundo as notas do soldado Kurt Zehmisch, do 134º Regimento, a partida teria terminado com uma vitória dos alemães por 3-2.

Cem anos depois, os ingleses desforraram-se em desafio jogado na cidade de Aldershot, a cerca de 60 km de Londres, como parte das celebrações do Centenário da chamada guerra total, tendo vencido desta vez por 1-0, perante uma assistência de 2.547 espectadores e cuja bilhética se destinou a obras de caridade. O estádio estava decorado com papoilas gigantes, flor que se tornou símbolo dos soldados da Commonwealth caídos em combate. Antes do início da partida, o público fez um minuto de silêncio e entoou “Noite Feliz”, essa canção eterna que simboliza o espírito do Natal, e que também terá sido cantada pelos militares inimigos, mas irmanados pelo espírito da época, um século antes, na manhã em que deixaram a guerra a nu, cobrindo-a de ridículo.

As tréguas espontâneas comprovam que milhares de combatentes de ambos os lados desobedeceram às ordens superiores por um curto período de tempo, em nome da festa cristã que era comum às nações europeias. Muitos deles lembraram-se que, se não fosse a guerra, certamente estariam num templo a celebrar o nascimento de Jesus Cristo. Optaram então por trazer o centro de adoração ao teatro de guerra. Que exemplo! Mas fizeram mais. Responderam ao desafio dos anjos nas campinas de Belém, há dois mil anos, relatado por Lucas: “Glória a Deus nas alturas, Paz na terra, boa vontade para com os homens” (2:1).

Jerónimo, na sua Vulgata Latina, traduziu assim o texto: “Gloria in altissimis Deo et in terra pax in hominibus bonae voluntatis”. Dizem os estudiosos que nos manuscritos mais antigos do Novo Testamento que são conhecidos, o Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus (século IV), um escriba tardio terá corrigido parte deste texto, que levaria ao erro da Vulgata. Segundo Frederico Lourenço, a tradução correcta seria então: “Glória nas alturas a Deus! E, sobre a terra, paz! Entre pessoas, boa vontade!” Nem faria sentido de outro modo. A mensagem universal dos anjos, que anuncia um Salvador universal, nunca se poderia destinar a um grupo restrito de seres humanos. A mensagem natalina consta da proclamação ao mundo de paz na terra e boa vontade entre todos os homens, sem excepção.

Aliás, quem pode determinar quem são as pessoas de “boa vontade”? Na Grande Guerra seriam os alemães, os ingleses, ou os franceses, que só entraram em guerra devido a um trágico engano rodoviário numa rua de Serajevo? Na manhã daquele dia fatídico (28 de Julho de 1914) o herdeiro do trono austro-húngaro, Francisco Fernando, tinha acabado de ser vítima duma tentativa falhada de assassínio. Horas depois, ao regressar duma visita aos feridos pelo atentado, o condutor perdeu-se no regresso do hospital.

Teve que fazer inversão de marcha e entretanto o motor foi abaixo, num cruzamento mesmo em frente ao bar onde o revolucionário Gavrilo Princip estava a beber um copo para esquecer o atentado frustrado. O arquiduque estava ali mesmo à mão de semear e desta vez o sérvio não falhou. A Áustria declarou guerra à Sérvia e assim se abriu um conflito mundial que ceifou 16 milhões de vidas humanas, entre elas a do mancebo Jacinto Brissos, um camponês do Alentejo e meu avô materno, que integrava o Corpo Expedicionário Português em França.

A guerra é a actividade mais estúpida e inglória ao cimo da terra, pois ninguém ganha e todos perdem, embora em escalas diferentes, apenas se traduzindo em morte e destruição física, mental, emocional, social, cultural e económica. O que as guerras precisam, afinal, é de natais lá dentro.

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