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Opinião: Deus não é sócio de César, por José Brissos-Lino

8 maio 2019

A confusão entre César e Deus – isto é, entre o secular e o religioso – sempre gerou problemas ao longo da História. A atração fatal pelo poder levou os homens a confundirem ambos os planos de intervenção, por vezes com graves consequências.

Quem acompanhe minimamente a realidade política brasileira rapidamente toma consciência da promiscuidade existente entre a religião e o estado, numa evidente negação do princípio republicano do estado laico. E é fundamental que o estado seja laico para que a sociedade possa ser inteiramente livre em matéria de crenças e de práticas religiosas, sem distorções nem limitações. A neutralidade religiosa do estado de direito é que permite a expressão livre das crenças religiosas a todos os cidadãos sem exceção.

Este princípio não significa que os cidadãos crentes, seja em que fé for ou em nenhuma, se devam ver arredados da vida pública e do exercício da sua cidadania. Pelo contrário. Na tradição de alguns grupos religiosos, como é o caso dos Testemunhas de Jeová, desconsideram-se normalmente como atos de cidadania participar em eleições ou servir as forças armadas. Para eles, cantar o hino nacional é considerado um ato de idolatria ao estado. Aliás, se um membro dessa organização religiosa participar na política ou nas forças militares é expulsa e condenada ao ostracismo, onde todos os membros, sejam ou não familiares, são incentivados e pressionados a cortar relações com ele. Mas o cidadão religioso, seja qual for a sua crença, não pode ficar arredado da sua participação cívica na construção da comunidade humana onde vive e se integra. Caso contrário será um corpo estranho ou membro duma seita fechada e alienante.

O poder sempre seduziu os homens. O desejo de a religião controlar ou pelo menos influenciar o poder sempre esteve presente na história dos povos. No tocante ao cristianismo a tendência terá sido iniciada com o imperador Constantino que usou a Igreja para fins políticos, tendo ela, depois disso, encetado um assalto ao poder, quando a sede do império passou para Bizâncio (Constantinopla) e a inevitável vacatura de poder em Roma foi preenchida pelos cristãos. Logo que a religião oficial do império passou a ser o cristianismo seguiu-se a perseguição dos cristãos aos pagãos e ao mundo clássico, erro que só alguns séculos mais tarde veio a ser corrigido por alguns Pais da Igreja.

Muitas vezes foi o poder político que se utilizou da religião a fim de pacificar as populações e prevenir revoltas, com a pregação da resignação, outras vezes foi a religião que se usou da sua influência e poder para angariar vantagens, privilégios e alcançar os seus fins.

O Brasil é um caso de estudo. Temos hoje uma “bancada da Bíblia” que parece ter no seu seio os parlamentares mais corruptos de todos. Os mais conhecidos líderes neopentecostais estiveram sucessivamente com Lula, Dilma, Temer e agora com Bolsonaro. Ou seja, o que querem mesmo é estar junto do poder, seja ele qual for. Não conseguem resistir a tal atracão. Pastores de comunidades cristãs de fé candidatam-se a cargos políticos eletivos e fazem campanha eleitoral muitas vezes dentro das próprias igrejas, dividindo assim o rebanho espiritual pelo qual são responsáveis, e contribuindo para exacerbar atitudes de confronto e extremar posições.

Como é que se chegou até aqui? Desde há muitos anos que os líderes pentecostais, neopentecostais e outros se vinham a aproximar do poder em sucessivas candidaturas a nível local, estadual e federal. Longe vão os tempos em que ser evangélico no Brasil era sinónimo de bom trabalhador, sério, honesto e íntegro e as lideranças davam-se ao respeito. Hoje o panorama mudou radicalmente.

Entretanto a política tem vindo a constituir um pólo de atração cada vez mais forte para os líderes espirituais. Um dirigente religioso, seja ele católico ou evangélico, nunca deveria submeter-se a campanhas eleitorais para cargos políticos. É contra a natureza da sua vocação ministerial. Jesus disse um dia: “O meu reino não é deste mundo” (João 18:36). Conta-se que Billy Graham teria recusado há largas décadas candidatar-se à presidência dos Estados Unidos. Terá invocado a ideia de que a sua tarefa espiritual seria mais importante do que o desempenho do cargo que é considerado como o mais importante do planeta. Todavia quase intercedeu sempre em oração a Deus pelos presidentes americanos, nas cerimónias oficiais de investidura, desde Dwight Eisenhower.

Ou muito me engano ou o Brasil um dia ainda vai pagar caro esta promiscuidade entre política e religião. Deus tenha misericórdia do povo brasileiro.

Artigo Visão

Images: SERGIO LIMA / Getty Images