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Opinião: No tempo dos Galileus , por José Brissos-Lino

13 dezembro 2018

Tempos houve em que a religião dominava a sociedade por completo, do ensino à saúde, da diplomacia à justiça, das manifestações culturais à investigação científica. Mais tarde, a Modernidade separou os campos da ciência e da fé e acabou com isso.

Nas vésperas de Natal do ano da graça de 1613, Galileu Galilei escrevia uma carta de sete longas páginas ao amigo Benedetto Castelli, matemático da Universidade de Pisa, onde suavizava as conclusões da sua investigação, provavelmente procurando controlar os danos de posicionamentos públicos anteriores, temendo o Tribunal do Santo Ofício, em resultado do confronto com as autoridades religiosas da época.

O principal argumento era que a pesquisa científica devia ser independente da doutrina da Igreja, já que as poucas referências bíblicas a eventos astronómicos não deviam ser lidas ao pé da letra, pois eram destinadas a um público comum e as autoridades religiosas não dispunham de competências científicas para julgar. Argumentou também que o modelo heliocêntrico proposto por Copérnico há 70 anos não era incompatível com a Bíblia, o que causou uma tempestade e contribuiu para o drama que desembocou na condenação do astrónomo por heresia em 1633.

Circularam então várias cópias da carta, em versões diferentes, sendo que uma delas terá sido enviada à Inquisição em Roma, existindo uma outra, mais moderada. Não era claro para os historiadores se os clérigos tinham manipulado a carta, a fim de sustentar a sua argumentação acusatória – e que levou Galileu a queixar-se disso aos amigos – ou se terá sido ele a amenizar uma versão anterior da mesma. A análise caligráfica sugere que a missiva agora redescoberta terá sido mesmo escrita por Galileu, encontrando-se cheia de notas e emendas.

Um artigo publicado no jornal da Royal Society, Notes and Records, que faz alusão à carta perdida, levou Allan Chapman, historiador de ciência em Oxford e presidente da Sociedade para a História da Astronomia, a afirmar que o escrito é de tal valia que “permitirá novos insights sobre este período crítico”. Surpreendidos pela descoberta do documento os investigadores consideram que “A carta de Galileu para Castelli é um dos primeiros manifestos seculares sobre a liberdade da ciência”.

A revista científica “Nature” conclui que a descoberta da carta considerada perdida há muito revela que Galileu terá afinal alterado os argumentos iniciais, considerados heréticos, com vista a atenuar as suas alegações a fim de enganar a Inquisição, numa das mais impressivas batalhas da história da ciência.

De resto, este equívoco permanente entre ciência e fé está na base de muitas dores e incompreensões ao longo da História. A verdade é que a ciência (ou a razão) e a fé movem-se em planos distintos e apresentam natureza diferente. Não são comparáveis nem suscetíveis de mistura. São, tal como os carris do comboio, companheiras de jornada que nunca se cruzam. Ou como escreveu João Paulo II na encíclica Fides e Ratio (1998) “A fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade.” Einstein pensava que se “a Ciência sem a Religião é coxa, a Religião sem a Ciência é cega.” E um G. K. Chesterton, sempre provocador, asseverava que “a razão é ela mesma uma questão de fé. É um acto de fé asseverar que os nossos pensamentos têm alguma relação com a realidade.”

A verdade é que entre os maiores cientistas do mundo encontramos ateus, cristãos, agnósticos e indivíduos de outras crenças religiosas. Quando os religiosos tentam justificar a sua fé com evidências científicas fazem mal, tanto como os racionalistas quando procurar desacreditar a crença religiosa de alguém pela mesma via. São as inseguranças a falar.

Vejamos. Ninguém pode provar a existência de Deus através de evidência científica. Mas também não existe quem possa provar a sua não-existência. Se o ser humano pudesse chegar a Deus apenas através da ciência, a fé seria completamente descartável, não serviria para nada. Todavia, ela é a base das religiões. O autor neotestamentário da Carta aos Hebreus diz mesmo: “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem” (11:1).

Ou seja, a fé tem, em certa medida, natureza inversa à da ciência, pois esta exige prova empírica para acreditar. Mais. A ciência está constantemente em reformulação. Novos estudos, investigações mais profundas, instrumentos de pesquisa e amostras mais alargadas podem alterar a análise de dados e, por consequência, conduzir a novas conclusões. Por isso se usa na academia a expressão “estado da arte”. Já a fé não é “atualizável”, embora a prática religiosa o seja, que é uma coisa diferente.

Face aos incríveis avanços científicos, pergunta-se: para que serve então a fé? Talvez a explicação mais interessante seja a do teólogo inglês Alister McGrath (Oxford), que recorda que os cientistas também são seres humanos. E os seres humanos “precisam de mais do que apenas uma descrição do mundo para viver a vida de forma significativa e informada.”

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