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Artigo Visão: Deus já não cabe no espaço Público?, José Brissos-Lino

2 novembro 2018

Uma das teorias mais defendidas por alguma filosofia política é que a religião deveria ser remetida para dentro dos templos, deixando o espaço público isento de qualquer presença ou simbólica religiosa. É caso para perguntar: Quem tem medo da religião?

Segundo o Papa Francisco: “A convivência pacífica entre as diferentes religiões vê-se beneficiada pela laicidade do Estado, que, sem assumir como própria nenhuma posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator religioso na sociedade.”

Entendamo-nos. As democracias procuram construir um Estado de direito, o qual é necessariamente laico, mas a sociedade não. A laicidade do Estado significa a sua neutralidade em termos confessionais, condição fundamental para assegurar a liberdade religiosa a todos os cidadãos sem exceção, quer os que professam a religião maioritária (no caso de haver uma), outro credo qualquer, mas também os que não têm nenhuma religião ou desejam mudar de filiação religiosa.

Como afirma Anselmo Borges: “a laicidade é exigida pela própria religião. Porque confundir religião e política significa ofender a transcendência de Deus, e também porque só homens e mulheres livres podem professar de modo verdadeiramente humano uma religião.” Todavia, em caso algum Estado laico significa Estado anti-religioso, já que o laicismo pode ser considerado uma forma violenta de laicidade que apenas pretende expulsar a religião da vida social, revelando-se como uma ideologia anti-clerical e anti-religosa.

Portanto, laicismo e laicidade são conceitos distintos. Se esta preserva a neutralidade confessional do Estado, respeitando todas as formas de crença, já o laicismo repudia qualquer presença ou influência religiosa no espaço público. Confundir ambas as coisas revela uma tendência autoritária que atenta contra a liberdade dos indivíduos.

De vez em quando ouvem-se vozes que vão neste sentido. A jornalista Fernanda Câncio parece que não gostou de ouvir a sua colega da RTP, Dina Aguiar, despedir-se do público, numa tarde de sexta-feira, com um “até segunda-feira, se Deus quiser”. Vai daí passou a criticá-la nas redes sociais e a apoucar a televisão pública chamando-lhe “a televisão da paróquia”.

Deixando de lado o preconceito que estas palavras exprimem, o que está aqui em questão é a legitimidade dum jornalista mencionar a palavra “Deus”, nem que seja para uma saudação enraizada na nossa cultura e nas relações humanas. Talvez para Câncio só se possa falar de Deus ou de religião quando for para apontar o dedo aos maus exemplos, que infelizmente abundam. Assim como não faltam escândalos com pessoal político, empresários, artistas e outros atores sociais, incluindo jornalistas. Toca a todos.

É bom não esquecer que não vai assim tão longe o tempo em que era proibido em Portugal construir qualquer espaço de culto não-católico com a fachada virada para a rua. A causa desta discriminação não era o laicismo mas o efeito era idêntico.

Admitamos por absurdo que, numa deriva totalitária, se baniam todos os símbolos religiosos do espaço público. Então e os símbolos desportivos (clubes, federações, desportos), ficavam? E os políticos (partidos, associações)? Já agora os humanitários (Cruz Vermelha, Médicos sem Fronteiras, Bombeiros). Porque não? E os comerciais (marcas) ou culturais (cinema, teatro)? A importância da Simbólica não é só a da utilidade direta, ela comporta um sentido, uma semiótica, constituindo-se como corpo de referências culturais e de enquadramento social. O mundo está saturado de simbologia, desde os sinais de trânsito aos reclames comerciais e institucionais, passando pela sinalética dos edifícios e a da comunicação humana.

Não é possível viver em sociedade sem o uso dos símbolos. E onde eles foram suprimidos a sociedade tendeu a cair em entropia. Se Karen Armstrong diz que “os seres humanos são animais espirituais”, então são-no no privado e no público. E Gandhi ia mesmo mais longe, defendendo que “uma vida sem religião é como um barco sem leme”.

Depois ainda há aqueles que querem liberdade para eles mas não para os outros. Veja-se a atitude de certos líderes religiosos em países onde a sua religião é minoritária por contraste com outras latitudes onde é maioritária. Muda-se a geografia, mudam-se as vontades. A separação efetiva entre Estado e religião é uma das grandes conquistas da civilização, que deve ser cada vez mais valorizada, até porque muitos ainda sonham vir a viver num regime teocrático, o que é, invariavelmente, uma rotunda desgraça, seja em nome de que religião for.

Deus nos livre desse mal.

José Brissos-Lino