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Carlos Moreira Azevedo e os “Ministros do Diabo” de Paulo Mendes Pinto

30 agosto 2018

No JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, publico um texto sobre o último livro do bispo Carlos Moreira Azevedo, Ministros do Diabo, uma obra marcante, não só pela temática e pela profundidade do estudo, como da postura cidadã e religiosa que o autor coloca na forma como encara a investigação.

Aqui fica o meu comentário e reflexão:

Parece quase uma ironia, mas a permanência do Bispo Carlos Moreira Azevedo (CA) em Roma tem sido altamente proveitosa para o mundo cultural e académico português. A sua produção tem sido regular, de qualidade, e com os ingredientes que a ciência mais deveria valorizar: a inovação aliada à capacidade de nos ajudar a questionar e a compreender o mundo de hoje.

Este volume corresponde à edição de seis sermões em Autos-da-Fé de Afonso de Castelo Branco, Bispo de Coimbra, nos primeiros anos de domínio filipino. E, como não poderia deixar de ser, CA não se coibiu de nos fornecer um bom grupo de bons textos que nos enquadram a época: a Inquisição neste seu momento de arranque e organização, assim como os próprios rituais da Inquisição e, obviamente, a figura central desta obra, o autor destes sermões.

E, logo com o título, CA obriga-nos ao primeiro momento de inquietação: “Ministros do Diabo”? E, se o leitor incauto poderia ter alguma dúvida, o antigo Bispo Auxiliar de Lisboa, historiador de provas dadas, mas também hábil urdidor da língua portuguesa, no-las retira no breve texto introdutório: “Ao colocar, no título desta obra, uma expressão de Afonso de Castelo Branco [autor dos sermões editados] para classificar os judeus “prelados e ministros do diabo […]” (1588), jogo voluntariamente com a ambiguidade, reservando tal atributo aos pregadores destes rituais hediondos” (p. 13).

Esclarecidos que estamos em relação a quem é o sujeito da classificação em título no livro, CA termina: “Realmente, o abuso da Palavra de Deus, posta ao serviço de uma causa antievangélica, pode bem denominar-se serviço diabólico” (p. 13).

CA espraia-se na sua leitura e interpretação do objeto historiográfico, não se contentando com a simples organização e descrição dos factos: mote da postura epistemológica, CA vai ao campo da afirmação de valores, para a perenidade do que deveria ser superior, estejamos a falar de Teologia ou de Ética: “Geralmente alega-se como atenuante a mentalidade da época, mas um ministro do Deus vivo sem ousadia profética, incapaz de ser crítico para com o pensamento dominante ou as forças do poder, revela infidelidade ao Evangelho” (p. 13).

Com esta declaração de princípios, CA, o bispo que escreve sobre um bispo, assume uma postura infelizmente não muito frequente em que, comummente, se afirma a História como um lugar em que não se toma partido.

Na sua intervenção na Universidade Aberta, aquando da apresentação deste mesmo livro, CA afirmou de forma clara: “Não me motiva o gosto de ressuscitar o pregador Dom Afonso Castelo Branco ao serviço da Inquisição, mais que do Evangelho. A eloquência erudita não é capaz de esconder interesses bastardos”.

Mas CA vai ainda mais longe na clara forma como categoriza aqueles contra quem Afonso de Castelo Branco pregava. Para CA, em várias passagens dos seus textos, os réus e condenados da Inquisição por “judaizar” (como surge nos processos da Inquisição), são “judeus”. Tão simples como isso: judeus. Isto é, relega para o foro íntimo e da consciência a identificação, não se refugiando na tradição historiográfica, muitas vezes usada, quer por historiadores judeus, quer não judeus, “cristãos-novos”, o termo técnico da época que lhes limitava a liberdade religiosa e de consciência.

Na não inibição em usar a palavra “judeu”, CA nomeia Jesus como “o judeu de Nazaré”, afirmando que o Messias Cristão “ergueu a voz para denunciar o farisaísmo legalista, o sacerdócio sem humanidade e a hipocrisia moralista” (p. 13).

Mas temos de ir mais longe na forma como lemos o texto de CA que em nenhum passo se inibe de levantar uma das questões centrais na própria pastoral, se quisermos entender a tradição destes sermões de Autos-da-Fé: qual a função de uma pregação nesse momento final em que a pena está já definida, e montado se encontra o teatro de violência que conduziria alguns dos penitenciados à morte? Obviamente, o arrependimento, a integração, o acolhimento e a comunhão não colhem por razões óbvias: já só a morte ou o cumprir das penas os aguarda. Não há lugar ritual para uma conversão. Nem isso, claramente, se pretendia, abrindo-se espaço para compreender este fenómeno no campo da violência, mais que no religioso.

Se a permanência de CA em Roma tem sido proveitosa para o mundo cultural e académico, o mesmo se não pode dizer tão claramente em relação à esfera religiosa. O afastamento geográfico deste homem de cultura, aberto e cosmopolita, dono de uma visão da religião como comunhão, empobreceu o campo do debate teológico que, aliás, é por tradição fraco em Portugal.

Remato citando novamente CA com uma frase da sua breve intervenção na sessão de apresentação no passado dia 22 de Junho: “Alguns andam a suspirar por ideias, rituais e vestes de tempos passados, o que não revela certamente a escuta da voz de Deus para este tempo. Apraz-me, também, refletir como ser muito do seu tempo, não permite a tantos permanecer livres servidores do símbolo da fé, em vez de se reduzirem a atados ministros do diabo. A Palavra e a vontade do Deus de Jesus impele a uma nudez interrogativa. Requer intérpretes com humildade mendiga de sabedoria humanista e com ousadia para inventar um futuro novo.”

(Carlos A. Moreira Azevedo, Ministros do Diabo. Seis sermões de Autos-da-Fé (1586-1595) de Afonso de Castelo Branco, Bispo de Coimbra, Lisboa, Temas e Debates, 2018.)

Paulo Mendes Pinto