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Ensaio de Paulo Mendes Pinto na revista P2, do Público: “Camões no século XXI. Uma leitura contemporânea de um clássico”
Breves trechos, para "aguçar" o interesse:
1. Camões transformado em mito
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Bastará, a título de exemplo, recordar que um dos episódios mais popularizados da sua vida, o naufrágio em que o poeta, com um braço fora de água, salva o manuscrito dos Lusíadas, só pôde fazer carreira, e ser tido como verdadeiro, numa sociedade de supostos marinheiros onde, afinal, poucos tinham vivido uma tempestade no mar. Obviamente o exercício de, numa tempestade, manter um braço de fora, conseguindo deixar seco o manuscrito, é do campo do irreal e do mitológico, do ficcional, não de algo que tenha acontecido, por tão impossível que é.
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2. A centralidade da paixão, do destino. Camões como identidade nacional
Esta dimensão tão incerta da factologia histórica, cruzada com a intensidade das paixões, onde tanta vez a crítica social, seguindo o modelo bíblico, surge espelhada na descrição dos amores falhados, conduzindo a receção dos seus textos ao campo do político e do ideológico. A paixão é, também, imagem da relação com o mundo, com o destino que integra o homem no global e social.
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Naturalmente, à medida que o sistema escolar português se foi construindo, Camões tornou-se peça central dos conteúdos escolares a transmitir às gerações vindouras. Há, pelo menos, dois séculos, que todos os portugueses estudam Camões, com tudo o que isso tem de obrigatoriedade e consequente repulsa, e de aproveitamento ideológico pelos mais variados regimes. A sua natureza enquanto mito deu a Camões a plasticidade necessária para, no identitário, ser “o poeta zarolho que escrevia versos para a Amália”, ao mesmo tempo que era o símbolo mais icónico do culto a um glorioso passado durante a ditadura de Salazar.
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Regimes diametralmente opostos em termos políticos, encontraram no poeta quinhentista material para as suas utopias e para suas ideologias.
Trazendo a questão para a atualidade, a equação torna-se objetiva e urgente: o que resta de Camões para um regime democrático assente num multipartidarismo e na inclusão?
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3. O sentido e a missão
Apesar de haver um Camões usufruído pelas mais variadas correntes nacionalistas, especialmente devido a Os Lusíadas, o que possivelmente é de maior significado poético, não é a epopeia de glorificação pátria por todos conhecida, mas a lírica. Tal como podemos dizer que Fernando Pessoa não é, e muito menos se esgota, n’A Mensagem, da mesma forma; o que mais impressiona o sensível leitor que se debruce sobre a obra camoniana, não é os Lusíadas.
A obra lírica de Camões é um percurso na vida de um poeta renascentista, marcado pelas agruras, mais que da vida, dos amores. Num jogo entre a sua biografia, as biografias das amadas, e as imagens que esses amores criam na crítica social que está sempre presente nas entrelinhas. Camões não hesita em colocar o dedo nas feridas da hipocrisia, nos plásticos e enganadores hábitos sociais, na bajulação e no servilismo das hierarquias.
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4. Eros como motor do movimento
No sentido que nos mostra o seu profundo conhecimento da cultura clássica, a atração é para Camões a força que tudo coloca em movimento, tal como o Eros o era para algumas cosmogonias gregas.
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É a transposição, quer para a dimensão cosmológica, quer para a antropológica, da máxima que possivelmente melhor resume a sua visão do mundo: “Todo o mundo é composto de mudança”.
Nada em Camões é estático ou encerrado; seja na visão da História de Portugal, com os momentos marcantes de mudança de paradigma, que encontramos em episódios como o Velho do Restelo, ou a forma como apresenta a inevitabilidade das suas paixões terminarem e se sucederem. O devir é, claramente, para Camões, a natural forma do mundo se apresentar aos humanos.
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5. Que futuro para o património Camões?
Chegamos à questão crucial que na contemporaneidade se coloca a qualquer comemoração que marque o passado coletivo: que fazer com este património? Isto é, na dimensão complexa do seu percurso histórico, naquilo em que ele nos toca hoje, para que serve Luís Vaz de Camões?
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Hoje, a cultura é dinâmica, as barreiras e as definições quebram-se, a inovação é valorizada.
O Clássico já não é apenas o que foi transposto para lá do tempo presente e, por isso, ganhou o seu lugar na “Classe”, mas é aquilo que nos interroga constantemente, que nos afeta e nos inquieta, que nos obriga a sair do espaço de conforto, como se aquilo que o poeta disse há quase 500 anos fosse a chave para nos compreendermos hoje.
Se a obra de Camões for “apenas” esteticamente sublime, ela foi importante, mas foi “apenas” isso mesmo: uma obra que se esgotou e que retratamos através do tempo verbal a que chamamos pretérito. Mas, de forma assustadoramente lúcida, Camões não FOI, mas Camões É. Camões não é “presentíficavel”; Camões impõe-se a ele mesmo no nosso presente trazendo-nos questionamentos inesperados.
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6. O humano num tempo de mudança
Para os dias de hoje, a obra de Luís Vaz de Camões transporta-nos para o tempo e para as questões fundamentais: a visão do mundo, a visão do humano, a inevitabilidade da mudança, a necessidade de sentido.
Olhando apenas para estas quatro dimensões que se interligam, temos já todo um programa, todo um ideário que é antropológico, político e social. Camões continua a ser um manancial poético que nos obriga a olhar para a nossa história e para a nossa forma de agir, e a confrontarmo-nos ao espelho que é a sua poesia, e verificarmos como somos tacanhos na interpretação do sentido coletivo e, até, na definição de uma identidade nacional.
Para Camões, a identidade residia na valorização do passado, mas com essa valorização literalmente subjugada à inevitável mudança. Portugal era a imagem e o motor desse Eros que tudo criava.
Camões, ao olhar e à leitura do Portugal contemporâneo, é um murro no estômago contra o imobilismo, contra a apatia, contra os tradicionalismos e os nacionalismos que apenas glorificam o passado, esquecendo-se dessa coisa tão óbvia que é o fluir em direção ao futuro. “Tudo é composto de mudança”, esquecemos nós, glorificando o que passou.
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No pleno sentido humanista, Camões valoriza os antigos, mas não hesita em dizer que eles estavam errados, quando tal era necessário afirmar.”