Skip to main content
universidade lusófona
Notícias

"O prémio que não devia ser necessário" por José Brissos-Lino

O Nobel da Paz de 2018 foi ganho por um médico ginecologista, cristão e africano, e por uma jovem yazidi iraquiana. Um porque tem gasto a vida a devolver esperança a quem sofre, outra porque foi vítima do Daesh e viveu para o denunciar. Um prémio que não devia ser preciso.

Denis Mukwege, 63 anos, é filho dum pastor pentecostal da República Democrática do Congo, e foi laureado “pelos seus esforços para acabar com o uso da violência sexual como arma de guerra e conflito armado”. Em 1999 o ativista fundou o Hospital Panzi, em Bukavu, para ajudar crianças e mulheres vítimas de violência sexual e tem levantado recorrentemente a voz contra a impunidade das violações em massa, o que lhe valeu o prémio Sakharov atribuído pelo Parlamento Europeu em 2014, em 2015 o Prémio Calouste Gulbenkian e em 2008 o prémio Olof Palme.

O jovem Mukwege ter-se-á sentido motivado a cursar medicina depois de viajar com o pai e o ver orar pelos doentes. Nas últimas duas décadas o “doutor Milagre”, como lhe chamam devido aos seus procedimentos especializados, tratou dezenas de milhares de mulheres e crianças no seu hospital, que é administrado pela Associação das Igrejas Pentecostais da África Central (CEPAC). Ele encara a intervenção da sua equipa como parte de “um processo de cura para que as mulheres possam recuperar a dignidade”. Em palestra proferida em 2017 na Federação Luterana Mundial, afirmou: “Se os cristãos não viverem as implicações práticas da fé nas suas comunidades e vizinhos, nunca cumprirão a missão que Cristo lhes confiou”.

Mukwege defende igual dignidade de homens e mulheres perante Deus e condena frontalmente a mentalidade e as práticas machistas como ofensivas à fé cristã, tendo conseguido o apoio de diferentes igrejas contra a violência sexual no Congo, onde a guerra civil já provocou cerca de 3,9 milhões de mortos e mais de 40.000 mulheres violadas pelos combatentes desde 1996. A sua abordagem passa por cuidar holisticamente das pacientes, não apenas tratar o corpo, mas também levá-las a lutar por si mesmas, com vista à autonomia, e prestando apoio psicológico, assistência jurídica e recursos com vista à reintegração na comunidade.

O abuso sexual violento deixou milhares de mulheres congolesas com consequências físicas de longo prazo, incluindo a fístula, que leva à incontinência, infecções e lesões que complicam o parto. Mukwege começou por ser o único médico a tratar essas mulheres em meio rural, havendo quem considere que se tornou o maior especialista mundial em tratamento de sequelas de violação.

A revista Christianity Today diz que Mukwege desafia os cristãos “à credibilidade do evangelho no século 21, para libertar a graça que recebemos ao fazer da igreja uma luz que ainda brilha neste mundo de trevas através da luta pela justiça, verdade, lei e liberdade, em suma, pela dignidade de homens e mulheres”.

Nadia Murad, 25 anos, uma yazidi iraquiana, minoria de etnia curda, foi vítima de violência sexual da Jihad, nas mãos do Daesh, que utiliza espancamentos, violações e escravatura sexual como armas de guerra contra minorias religiosas. Foi uma das 6500 mulheres escravizadas pelo grupo terrorista. Tornou-se activista dos direitos humanos, funcionando como porta-voz das mulheres nessa situação e tenta atrair a comunidade internacional para a sua luta contra a violência sexual em conflitos bélicos e o genocídio das minorias. A Academia de Oslo distinguiu Nadia pela notável coragem que revelou ao relatar o seu sofrimento, quando foi raptada e mantida escrava sexual, sofrendo abusos “inimagináveis”, aos 21 anos, quando só queria ser cabeleireira.

Murad tornou-se a primeira Embaixadora da Boa Vontade para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico Humano das Nações Unidas, em 2016, numa altura em que já recebera o prémio Sakharov e o prémio do Conselho da Europa, Václav Havel. Pouca coisa para quem morria todos os dias no seu cativeiro.

Num mundo ideal a simples existência de um Nobel da Paz seria redundante. Seria normal que não houvesse guerra nem violência sexual sobre crianças e mulheres. O sonhador John Lennon idealizava um mundo sem religião, nem estados, nem propriedade privada. Mas, de certo modo “Imagine” não passa dum poema idealista e desfasado da realidade. O problema dos humanos não é a diversidade religiosa, social ou política. É não saber viver com elas em paz, no respeito pelos direitos humanos e no reconhecimento da dignidade de cada um, independentemente da idade, sexo, cultura, religião, etnia ou condição social.

Talvez quem defenda isto também seja um sonhador, como diz a canção, neste mundo em permanente conflito. Talvez, mas os exemplos de vida, coragem, sacrifício e perseverança de Denis Mukwege e Nadia Murad permitem-nos esse sonho dos justos. Para que o Nobel da Paz seja desnecessário.

Para que mais ninguém tenha que morrer por dentro.

Por José Brissos-Lino.

Ler Artigo