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Opinião: A água do Jordão não é benta, por José Brissos-Lino
19 junho 2019
O rio Jordão e a Terra Santa tornaram-se nos últimos anos um importante centro de peregrinação religiosa para alguns sectores cristãos. Uma moda que se pode inserir no processo de judaização que está em curso.
Desde a Reforma que os protestantes sempre discordaram dos católicos, entre outos pontos, em matéria da eleição e fixação de lugares sagrados, de práticas peregrinadoras e de atribuição de poderes sobrenaturais a quaisquer objectos ou elementos físicos.
Foram os grupos denominados neopentecostais, com a IURD à cabeça, que romperam com a velha tradição protestante através do surgimento de práticas como pedidos de oração escritos em papéis para levar ao Monte Sinai ou ao Muro das Lamentações, em Jerusalém, a venda de água engarrafada do rio Jordão ou de punhados de terra de Israel, culminando com a importação de pedras dessas paragens para a construção do templo que Edir Macedo construiu em São Paulo. Uma espécie de revisitação da velha tradição medieval das relíquias.
Esta tendência vem-se acentuado com a proliferação da bandeira do moderno estado de Israel, do menorah, do shofar, da utilização do kipah ou as réplicas da Arca da Aliança nos actos de culto de algumas igrejas evangélicas, acentuando assim uma tendência que já se vinha verificando no sentido da judaização da fé, impulsionada pelo movimento denominado “judaísmo messiânico” e cujo expoente máximo será eventualmente a réplica exterior do Templo de Salomão em São Paulo.
É certo que os neopentecostais não são considerados protestantes nem evangélicos entre nós, embora o sejam no Brasil, país de origem deste fenómeno religioso, onde a tendência sincrética é muito forte, até pelas características da sua população, com forte comparticipação índia, africana, europeia e asiática, o que não admira se tivermos em conta ainda a história e extensão continental do país irmão.
A verdade é que este súbito interesse de tais meios religiosos está relacionado com uma determinada interpretação escatológica que começa por considerar a velha aliança de Iavé com o povo hebreu, confundindo-a com o Israel político actual, o que tem vindo a influenciar a política norte-americana no Médio Oriente. Esta corrente teológica vai ao ponto de considerar quase questionável a fé de um cristão que não entre numa deriva judaizante, de tal forma que o baptismo no rio Jordão passou a adquirir um estatuto especial.
A fé evangélica considera o baptismo como uma ordenança de Cristo à Igreja, sendo que as águas do baptismo cumprem uma função meramente simbólica, representativa da “lavagem da Palavra” (Efésios 5:26). Trata-se de um rito de passagem que permite ao neoconverso, por tradição, passar a integrar formalmente a comunidade dos crentes, a ecclesia.
Não se atribui qualquer valor intrínseco às águas baptismais, razão porque o acto pode ser praticado no baptistério duma igreja, mas também numa piscina, praia, rio, lago ou represa, quando se trata da modalidade de imersão. O caso de Filipe e o eunuco etíope ilustra o princípio bíblico de que desde que haja água, poderá haver baptismo: “E, indo eles caminhando, chegaram ao pé de alguma água, e disse o eunuco: Eis aqui água; que impede que eu seja batizado? E disse Filipe: É lícito, se crês de todo o coração. E, respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus. E mandou parar o carro, e desceram ambos à água, tanto Filipe como o eunuco, e o batizou” (Atos 8:36-38). Daqui se depreende que a legitimação do acto está no desejo intrínseco e na fé do catecúmeno e nunca nas propriedades químicas ou sobrenaturais da água.
Um baptismo nas águas do Jordão não é melhor em nada do que em qualquer outro local do mundo. Razão tinha Naamã, capitão do exército do rei da Síria, em resistir a querer banhar-se nas águas lamacentas daquele rio, que não se comparavam com os límpidos cursos de água da sua terra (II Reis 5:1-14). De facto o que limpou a lepra do chefe militar não foram as águas do Jordão mas Deus, de forma sobrenatural, em função da sua obediência à orientação do profeta Eliseu.
Compreende-se o valor simbólico e emocional de ser baptisado no mesmo rio em que Jesus Cristo se submeteu voluntariamente ao repto de João, o Baptista. Mesmo que o baptismo de João não possa ser considerado exactamente cristão, uma vez que Jesus não tinha pecado algum e João pregava o baptismo do arrependimento. Já não se compreende que o Jordão se torne pretexto para rebaptismos, ou que se considere proporcionar um baptismo de valor espiritual mais elevado do que o realizado em qualquer outro local. Talvez seja bom lembrar que a água do Jordão não tem quaisquer propriedades sobrenaturais, nem está associada a alguma graça especial ou relevância espiritual, mas também convirá não esquecer o que disse o papa Leão X: “Negar que depois do baptismo de uma criança o pecado permanece é tratar com desdém tanto a Paulo como a Cristo.
Imagem: Lior Mizrahi7 Getty Images