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Opinião: A obra de arte de Alan Turing, por José Brissos-Lino
1 agosto 2019
Foram os resquícios da mentalidade vitoriana que levaram a Inglaterra a sacrificar cruelmente um dos seus maiores. E um certo rasto puritano que pontificou durante séculos em terras de Sua Majestade.
Em 1952 a homossexualidade ainda era proibida no país, o que levou o cientista Alan Turing a ser processado, aos quarenta anos de idade, e condenado por “indecência grosseira”. Entre ficar preso ou submeter-se à castração química, à força de estrogénio, optou por esta, mas foi igualmente banido da vida académica, tendo sido ostracizado pela sociedade e pela academia. Impedido de viajar, lecionar ou fazer investigação, não aguentou e passados dois anos suicidou-se, comendo uma maçã na qual injetara previamente cianeto.
A perseguição e tortura que sofreu não foram diferentes das de qualquer outro cidadão britânico homossexual. Apesar disso, esta foi a mente brilhante que conseguiu decifrar o complicado código nazi Enigma, permitindo que as tropas aliadas pudessem intercetar as mensagens alemãs e localizar os respetivos submarinos durante a Batalha do Atlântico, nos anos da II Guerra Mundial. Estima-se que a sua acção tenha encurtado o conflito em dois anos e poupado 14 milhões de vidas humanas.
De resto, foi a equipa de Turing que conseguiu desmascarar um espião português ao serviço dos alemães – Gastão Crawford de Freitas Ferraz, natural do Funchal, e funcionário da Marconi – aliciado em Lisboa a troco de 1500 escudos mensais, quatro vezes mais do que o salário médio em Portugal na altura, e que se alistou no navio-hospital Gil Eanes como radiotelegrafista.
Segundo José António Barreiros, que tem obra publicada sobre a espionagem na II Guerra Mundial: “A sua localização foi concebida graças à radio-escuta das comunicações alemãs, que apesar de criptografadas pela máquina Enigma, foram descodificadas em Bletchley Park por uma equipa de que o mais proeminente elemento foi Alan Turing. Tratava-se de informação de tal modo secreta que a sua fonte era indicada nos documentos que se produzissem como ULTRA”. Alertados os serviços secretos britânicos, a Royal Navy deteve o espião português em alto mar e fê-lo desembarcar em Freetown (Canadá) a 1 de Novembro de 1942, desconhecendo-se o seu destino posterior.
Só em 1967 foram descriminalizadas as relações entre homens adultos em Inglaterra e no País de Gales, a que se seguiu a Escócia, em 1980, e a Irlanda do Norte em 1982.
Mark Carney, actual governador do Banco de Inglaterra, referiu o trabalho do cientista: “Alan Turing foi um excelente matemático cujo trabalho teve um enorme impacto na forma como hoje vivemos. Como pai da ciência da computação e inteligência artificial, bem como herói de guerra, as contribuições de Alan Turing foram muito variadas e inovadoras. É um gigante em cujos ombros estamos tantos”. De facto Turing desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento dos primeiros computadores, tanto no âmbito do Laboratório Nacional de Física como depois na Universidade de Manchester, sendo por isso considerado o grande pioneiro da computação moderna.
O puritanismo marcou a Inglaterra durante séculos, e a mentalidade vitoriana permaneceu presente na sociedade até ao século vinte. A supremacia europeia, a pulsão imperial e uma religião ao serviço do poder moldaram toda uma sociedade, que só a Modernidade veio questionar.
A mais do que justa reabilitação de Alan Turing chegou apenas em 2014 através dum “perdão real”, sendo agora o matemático um herói oficial da coroa britânica. A mesma Inglaterra que o amaldiçoou vai andar no bolso com ele, a partir de 2021 nas novas notas de 50 libras, que exibirão o seu rosto e uma frase que revela a sua genialidade: “Esta é apenas uma antecipação do que está por vir, e apenas a sombra do que será” (retirada da entrevista concedida ao The Times em 1949). A justificação do decisor desta escolha histórica é o desejo e a necessidade de representar “todos os aspetos da diversidade dentro do país, de raça, religião, credo, orientação sexual, deficiência e além.”
Até agora só o símbolo da tecnológica Apple, uma maçã com um pedaço a menos, homenageava Alan Turing como o pai da informática, numa referência clara à sua morte, e mais recentemente a obra de Andrew Hodges Alan Turing: The Enigma, entretanto adaptada ao cinema em 2014 e que ganhou o Óscar de Melhor Argumento Adaptado.
Zygmunt Bauman (A Arte da Vida, Lisboa: Relógio D´Água, 2017) diz com razão: “As nossas vidas, quer o saibamos ou não e quer o saudemos ou lamentemos, são obras de arte”. Foi o caso de Alan Turing, apesar de as pinceladas negras da perseguição e da tragédia fazerem parte do quadro.
Estátua de Alan Turing, em Manchester - Imagem: Christopher Furlong/ Getty Images