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Opinião:As Religiões e o Estado, ou para um questionamento dos fundamentalismos, por Paulo Mendes Pinto

23 janeiro 2019

Que poder deve ter um religioso para dizer se um “outro” pode, ou não, fazer uma interrupção voluntária da gravidez? Levemos o exemplo pelo viés do quase absurdo: se, pela lei, uma cidadã puder fazer um aborto, isso implica que as religiosas são obrigadas a também abortar? Mais uma vez, confunde-se Direito Civil com a medieval noção de Cristandade: nada pode sair fora dela e tudo o resto deve ser extirpado. Uma reflexão no "Dia Mundial da Religião".

Lançada pelos Bahá’ís em 1950, o Dia Mundial da Religião, colocado significativamente no singular e não no plural, mostra-nos uma das dimensões essenciais dessa religião tão humanista e tão empenhada nas questões da dignidade e dos Direitos Humanos.

Hoje, para além dos Direitos Humanos, falamos também muito em Deveres Humanos. No campo religioso, para além de Liberdade Religiosa, associativa ou individual, que deve ser inquestionável e devemos ajudar a alargar, também devemos equacionar os «Deveres das Religiões». Partindo do princípio, comprovado até ao momento, de que estamos todos “condenados” a viver no mesmo mundo, há que procurar formas e equações que nos permitam viver num oikos equilibrado, numa oikos+nomia harmoniosa, num ecossistema plural respeitador das diferenças.

Se a Religião, como campo de crença e de vivência livre de cada indivíduo, tem de ser a plena afirmação da liberdade, as instituições, como agremiações de crentes, devem ser instrumentos que fomentem o bom ambiente, a boa vizinhança. Mas estamos longe de as religiões suportarem pacificamente a diferença, uma vez que são cosmovisões que organizam as leituras do mundo através, muitas vezes, de sistemas fechados de verdade que envolvem e se aplicam mesmo a quem não é religioso.

Circunscrevendo a problemática a elementos mediaticamente mais visíveis, nos últimos anos temos assistido a um fenómeno em que as religiões tomam, crescentemente, partido em questões políticas, em questões de definição da sociedade, nas chamadas “questões fracturantes”.

Os movimentos de negação, de recusa, ou mesmo de demonização de certos fenómenos sociais ou culturais têm vindo a ganhar algum terreno e deixa-nos crescentemente preocupados. Tal facto parece-me que tem raiz numa cimentada confusão dos poderes sociais e políticos que muitas confissões fazem sem qualquer pudor. São poucas e poucos líderes que o fazem, mas, seguindo as pegadas do Brasil, por exemplo, a situação merece um olhar redobrado.

Na base destes posicionamentos está uma totalmente retrógrada interpretação do papel social das confissões e, em especial, o renascimento de uma visão arcaica, pré-moderna, em que não se vislumbra capacidade alguma de distinguir os poderes que nos regem e, muito menos, de assumir que a sociedade não é um espelho das suas convicções religiosas.

A raiz desta postura encontra-se nos fundamentos que levaram, na Idade Média e, mais tarde, em Portugal, à instauração do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição. Ao longo da Idade Média, postulou-se e assimilou-se a noção de Cristandade. A esse princípio, correspondia um território, um povo, uma ideóloga religiosa. Por natureza, na Cristandade havia… cristãos. Tudo o resto podia ser extirpado, purificando a dimensão religiosa.

Nessa ideia de Cristandade, nada podia ter lugar que não encaixasse numa ortodoxia que tudo geria, do político ao social, passando pelo cultural. O que fosse contra a fé estipulada, merecia a reprovação e, no limite, o seu fim imediato – para os livros, a queima, para os humanos, a morte. O Tribunal do Santo Ofício, nascido em plano século XIII, era o instrumento oficial que visava extirpar esses males, as heresias, da sociedade.

Felizmente, no longo caminho do século XVI ao XVIII, aprendemos que a Liberdade é um valor. Ora, como pode um grupo religioso, por exemplo, pretender que toda a sociedade não veja um certo filme, porque esse grupo o acha herético ou blasfemo?

Por parte de um cinéfilo, a resposta é direta: “se não gostam do filme, não o vejam”. E esta resposta tem a sua lógica: se o religioso não é obrigado a ver o filme e, assim, a confrontar-se com esse suposto erro doutrinário, então que deixe os restantes, que não se chocam, verem.

Mas, porque circulam abaixo-assinados para proibir certos filmes? Simplesmente porque se pretende que o mundo seja ordenado de forma cristã. Isto é, mesmo quem não é cristão deve respeitar os ditames dos grupos cristãos. Sem o saber, todo o mundo é cristão e tem de se comportar como tal – se não se comporta, terão de ser construídos instrumentos que o levem ao bom caminho, começando por abaixo-assinados, terminando não sei em quê.

Passando do simples caricatural filme ofensivo, passemos para o campo legislativo. Que poder deve ter um religioso para dizer se um “outro” pode, ou não, fazer uma interrupção voluntária da gravidez? Levemos o exemplo pelo viés do quase absurdo: se, pela lei, uma cidadã puder fazer um aborto, isso implica que as religiosas são obrigadas a também abortar? Mais uma vez, confunde-se Direito Civil com a medieval noção de Cristandade: nada pode sair fora dela e tudo o resto deve ser extirpado.

Em 2009, o então Presidente Lula terá dito, numa reunião com líderes evangélicos que se opunham à aprovação de legislação que pune os discursos homofóbicos, que os evangélicos tinham sido perseguidos e intolerados, mas agora eram eles os intolerantes e os perseguidores. Com estas posições, o cidadão comum apenas encontra em certos grupos religiosos um fóssil que nos faria recuar dois séculos, para antes da Revolução Francesa e do fim da Inquisição.

Mas a polis não se resume às relações entre pessoas e identidades religiosas. Teoricamente, o Estado é o lugar da igualdade, mesmo que o seja apenas como objectivo. No Estado confluem as liberdades, os direitos e os deveres. As regras do Estado não são mais que a definição das linhas que definem um são convívio, tendo como horizonte uma ideia de Bem Comum, uma Casa Comum em que todos habitamos e, por isso, temos que ser vizinhos.

E essa construção é, acima de tudo, participativa e é por essa participação que ganha lógica e legitimidade. Todos participamos com os nossos impostos neste modelo de gestão; todos usufruímos, mesmo quando apenas criticamos, desse modelo de organização e de gestão. Mesmo sem realizar crime algum, todos podemos ser chamados a testemunhar. Mesmo sem recorrer ao sistema público de ensino, todos os nossos filhos são ensinados e avaliados mediante conteúdos e regras uniformes.

No fundo, com todas as falhas, o Estado, como o temos, em Portugal ou no Brasil, é o que possibilita, por exemplo, que qualquer indivíduo, se for atropelado gravemente, tenha direito a seguir para uma unidade de cuidados intensivos, sem que lhe seja questionado nada sobre a sua conta bancária. É uma garantia que advém por se pertencer à espécie humana e se viver num espaço que definiu certas regras como inquestionáveis.

Neste momento, os tempos são conturbados para as instituições e os movimentos que preconizam uma recusa ao Estado. Não podemos querer que a população tenha ideias correctas do universo religioso se as religiões as não transmitirem. Regressando e interpretando no tempo a proposta Bahá’í, arrisco-me a dizer que o religioso pode vir a matar parte das Religiões. Não é de estranhar que em muitos inquéritos realizados na Europa Ocidental, recordando aqui o projeto coordenado por Alfredo Teixeira (Identidades Religiosas na Área Metropolitana de Lisboa, Fundação Manuel dos Santos, 2018), os “crentes sem religião”, sem ligação a instituições, mas crentes, são dos grupos que consolidadamente mais aumentam.

Posto estas considerações, urge refletir e, acima de tudo, agir, investigar, destruir as ideias feitas, antes que elas nos destruam a nós.

Artigo Visão

Imagem: Dan Kitwood/ Getty Images