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"Sagrado, demasiado sagrado - ou porque há tanta guerra na Terra Santa"

29 dezembro 2023

A reflexão de Paulo Mendes Pinto no jornal Público.

“Sagrado, demasiado Sagrado” ou porque tanta guerra na Terra Santa

Nos dias que correm, o peso das palavras, das tradições, dos locais, mostra-nos a vertigem do potencial de morte que podem ter. Seria infindável a lista das guerras que nos últimos milhares de anos tiveram lugar na malogradamente chamada Terra Santa e incontáveis os mortos que serviram esse conceito de forma, tantos deles, voluntária, crendo que ganhavam a eternidade com esse gesto derradeiro.

A desesperança perante a realidade leva-nos, tantas vezes, a este desafiante momento de ver o espiritual onde apenas vemos guerra. A Terra Santa é esse invólucro simbólico que reúne em si os dois opostos mais inconciliáveis do humano: a mesma realidade pode levar-nos a uma elevação ímpar, mas também nos rebaixa como espécie à negação de tudo o que de sagrado queremos.

Em 1878, Friedrich Nietzsche iniciava um momento decisivo da sua filosofia com uma obra na época foi pouco aplaudida. “Humano, demasiado humano”, seria o trabalho seminal de um dos chamados Mestres da Suspeita (Nietzsche, Marx e Freud), desconstruindo, iniciando o seu processo de implosão do que até então nos eram apresentadas como verdades eternas.

Porque “Humano, demasiado humano”, na Terra Santa, tudo é “Sagrado, demasiado Sagrado”. No sentido histórico, esse território é onde radicam utopias e, ao mesmo tempo, apocalipses desejados em abertura de tempos de fim do mundo. Tudo lá foi colocado, do que é genesíaco ao que é catárquico. E o mais irónico é que, a “Terra onda mana leite e mel” (Ex. 33, 3), era apenas um território menos pobre, menos desértico que os envolventes. Contudo, gerou-se em horizonte de utopia levado ao limite de identidade territorial e de povos variados.

Mais que esperança num reencontro com o início, Jerusalém tornou-se nas teologias o lugar do momento final, do separar de águas. Uns, serão salvos no momento que eclodir ali mesmo, enquanto outros terão a morte eterna como corolário da sua vida. Tudo ali foi representado nessa ligação de um único lugar a essa decisão aterradora de haver um julgamento final que marca o fim dos tempos.

E por isso todos lá querem estar, todos lá querem ir, todos a querem dominar. A Terra Santa é um “Sagrado, demasiado Sagrado” para tão pouca terra. Uma terra tão pequena para nela caberem todos os medos de uma humanidade que comunga da história religiosa do Mediterrâneo. E, contudo, tudo nela representa esse sonho de fim, desde os fósseis que ficaram na língua, como a palavra “orientar” que nos mostra que na Idade Média se colocava Jerusalém no centro dos mapas e os virávamos para Oriente, até às lutas tremendas que vemos sucederem-se, século após século.

Recorrendo á bibliografia, apesar de não consensual, podemos dizer, em números redondos, que Jerusalém, apesar de ser considerada sagrada, foi, sobretudo, cidade de ódio, de desolação e de guerra: esteve cercada mais de 50 vezes, foi conquistada por 36 ocasiões e destruída em 10 delas. Quase certo que nenhum outro lugar neste planeta tem semelhante currículo.

Hoje, cruzam-se visões sagradas e laicizadas do território. Sem contar com cristãos, hoje ausentes do domínio territorial na região, para muitos judeus, a legitimidade na posse da terra está na Bíblia, no mandamento de Deus para que os descendentes de Moisés a tomassem, mesmo que à força, como vemos na descrição bíblica da conquista de Jericó - portanto, a legitimidade está numa dádiva de Deus; Para muitos muçulmanos, não só foi ali que Maomé ascendeu aos céus, e onde estão os seus lugares sagrados, como foi o território seguidamente conquistado, perdido e novamente conquistado ao longo de mais de um milhar de anos, com memórias que vão dos cruzados medievais às modernas colonizações, onde tanto se jogou nas I e II Guerras Mundiais. Todos os ódios foram acirrados numa geografia condensada de significados sagrados.

O irónico, é que os mesmos materiais que resultaram num intenso quadro de ódios, onde é impossível saber qual a origem ou início, poderia também ser o mesmo material para uma convivência fraterna. Contudo, o desejo é o da exclusão, a do monopólio do domínio desse sagrado que dará a salvação final.

É duplamente irónico que, para os fundamentalistas que decidem matar e morrer por essa terra, essa morte é a efetiva prova da sua verdade: entregam-se como mártires, decidindo, assim, colocar, através da morte, as suas vidas prontas para o juízo final que acreditam vir ali a ter lugar. O juízo final há muito que começou na Terra Santa. Todos os dias tem lugar na morte de inocentes.