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"Um livro de protestantes que mudou a Europa (e não foi a Bíblia)" por José Brissos-Lino
4 outubro 2018
Muito antes da edição da Encyclopédie de d’Alembert, editada em França por Diderot entre 1751 e 1772, já Bernard & Picard publicavam na Holanda uma obra fabulosa sobre a diversidade religiosa no mundo.
A obra em questão, Cérémonies et coutumes religieuses de tous les peuples (1723), que integra a exposição “Do céu e da terra. Rituais, cerimónias e costumes religiosos à volta do mundo” patente no Museu Gulbenkian, e que integra a colecção do fundador, apresenta rituais, cerimónias e costumes religiosos à volta do mundo. Ela resulta do esforço enciclopedista e iluminista do autor Bernard e do ilustrador Picart e contribuíram, a partir do século XVIII, para a construção de um paradigma dominante no que respeita à representação das religiões e culturas do mundo, que ainda hoje perdura.
A obra permite desenvolver uma abordagem crítica, sobretudo a partir da análise histórico-cultural de algumas das suas ilustrações, abrindo pistas interpretativas e comparativas úteis para a leitura da nossa contemporaneidade.
É pacífico entender-se que os enciclopedistas franceses contribuíram para o movimento cultural em direcção à Modernidade, mas estes dois autores protestantes tiveram que sair de França para poderem publicar este seu trabalho, que veio a ser considerado mais tarde como “o livro que mudou a Europa”.
Esta enciclopédia é um tratado essencialmente antropológico e etnográfico na área das religiões e espiritualidades em todo o mundo, desde as religiões monoteístas, até às filosofias e espiritualidades orientais e das Américas, passando pelo mundo clássico, deísmo e maçonaria.
Nota-se aqui uma preocupação de reconhecer o universo metafísico dos povos, mesmo dos não-europeus, como forma de melhor os compreender no seu mundo, na sua fé e crenças, ritos, mitos e liturgias, mas também nos costumes ligados a elas, alguns deles considerados bárbaros pelos europeus, como é o caso do sati, a prática hindu em que a viúva se sacrificava na pira funerária do marido, com tradição em partes do norte e do centro da Índia há mais de 700 anos.
A obra enferma de alguns equívocos como a imagem duma espécie de tábua islâmica dos Dez Mandamentos, que confunde preceitos com mandamentos, ou o guarda-roupa das mulheres da Índia, certamente por falta de informação.
Numa imagem icónica que abre a obra surge a figura papal ao lado do pendão do tribunal do Santo Ofício, com um pé em cima da figura que representa o mundo clássico (pagão) e o outro sobre o representante do judaísmo, o que sugere uma leitura inequívoca.
O que é notável nesta obra é a visão larga dos autores, que, apesar dos condicionamentos da época e dos naturais preconceitos datados desses tempos, conseguiram apresentar aos interessados uma perspectiva de diversidade a nível global, tanto quanto era por eles conhecida. Certamente que a vigência da Inquisição os condicionou, não apenas na possibilidade de publicar a sua obra em solo francês, como à opção pela não-utilização do termo “religião”, sob risco de virem a ser acusados de heresia, quando a palavra religião era precedida na Europa católica por artigo definido. O que havia era a Religião (católica apostólica romana, obviamente).
Vivemos hoje não apenas populismos políticos mas também religiosos. Ao contrário de Bernard & Picard, que no século XVIII deram a conhecer ao mundo outras crenças, religiões e espiritualidades, outras formas de abordagem à Transcendência, em particular as desconhecidas na velha Europa, os extremismos e fundamentalismos religiosos de hoje, passados trezentos anos, não só ignoram, como recusam conhecer e ainda menos dialogar com a diferença.
Mesmo dentro das grandes religiões monoteístas espreita sempre o sectarismo, de diferentes formas, como se verifica na presente luta pelo poder nas altas esferas do catolicismo, na pulverização protestante, nas diferentes correntes religiosas judaicas ou no ódio secular entre xiitas e sunitas.
Bernard & Picard eram avançados para a sua época. Tragicamente, continuam a sê-lo ainda hoje, passados três séculos
Artigo da Visão, por José Brissos-Lino